REPORTAGENS
16/02/2021
Por Alessandra Marimon
Em meio à crise que marcou a pandemia de covid-19 no Amazonas em 2020, a Fundação Amazônia Sustentável (FAS), organização não governamental que atua na região amazônica, decidiu agir para garantir maior estabilidade às famílias. Com a ajuda de 112 instituições, governos, empresas, organizações da sociedade civil e universidades, a FAS criou uma iniciativa conjunta denominada “Aliança dos povos indígenas e populações tradicionais e organizações parceiras do Amazonas para o enfrentamento do coronavírus” ou “Aliança Covid-Amazonas”. Mais de 350 mil pessoas foram beneficiadas com a distribuição de 28.094 cestas básicas, o que evitou o deslocamento de comunidades ribeirinhas até as zonas urbanas.
Outras ações previstas para o enfrentamento dos efeitos negativos provocados pelo vírus envolveram a entrega de mais de 380 mil máscaras, combustível emergencial, mil oxímetros e mais de 25 mil unidades de álcool gel a populações tradicionais e indígenas de Unidades de Conservação (UCs) do Amazonas. Também foram contempladas comunidades urbanas de regiões periféricas de Manaus, onde a situação de vulnerabilidade social foi agravada pela pandemia.
Amazônia profunda em alerta
Em áreas remotas e não urbanas localizadas no coração da floresta amazônica, populações ribeirinhas e indígenas vivem essencialmente de atividades ligadas à agricultura familiar e ao turismo de base comunitária. É comum que as famílias se empenhem conjuntamente na produção de alimentos tradicionalmente presentes na alimentação cotidiana, a exemplo da produção de farinha, açaí e extração de castanhas, além da pesca de peixes nativos da região. Diversas comunidades também movimentam suas economias por meio de pousadas e restaurantes, empreendimentos gerenciados pelos próprios “comunitários”.
Com a chegada da Covid-19, a realidade de milhares de famílias virou de cabeça para baixo. Em março de 2020, como medida de prevenção e combate ao coronavírus, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) suspendeu a visitação de pessoas em UCs no Amazonas e a Fundação Amazônia Sustentável se viu obrigada a paralisar as atividades nos locais. O coordenador de projetos da FAS, Adamilton Bindá, explica que as famílias ribeirinhas acabaram desoladas e sem renda. “Eles precisavam de insumos, mas os mercados estavam fechados e isso se mostrou uma grande dificuldade. Para o turismo, o carro-chefe de grande parte das comunidades, foi pior ainda, pois as UCs permaneceram fechadas para visitação”.
Em Vila Nova do Chita, comunidade que se encontra à beira de um igarapé na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Puranga Conquista, a jovem agente ambiental voluntária, Brenda Valentim, explica que todas as famílias foram beneficiadas com as cestas e kits, mas não sem antes sofrerem com os impactos da covid-19. “Logo que a pandemia chegou no Amazonas, ficamos sem alimentação, porque todos os alimentos vêm de Manaus a partir dos barcos recreios, que pararam de passar por aqui. Foi bem difícil”.
Cadeia produtiva do turismo foi uma das mais atingidas pela pandemia, impactando pousadas e restaurantes, mas também na produção e venda de artesanatos locais.
Foto: Dirce Quintino
Aliança em prol da vida
Desde o início da pandemia de covid-19, as preocupações têm girado em torno de dois fatores-chave: o aumento das taxas de desemprego e da inflação, que fecharam o ano em 14,2% e 4,52% respectivamente, segundo o IBGE. Os alimentos foram os principais responsáveis pela maior inflação anual desde 2016. Em 2020, o IBGE divulgou que o país havia retornado às estatísticas do Mapa da Fome, soando um alarme para o fato de que a pandemia atinge mais a população pobre.
O Amazonas é um dos estados brasileiros que mais tem sido impactado pelos efeitos da Covid-19, com uma situação de calamidade do sistema público de saúde que envolveu, inclusive, a morte em massa de pessoas por asfixia, devido à falta de oxigênio. Tudo isso trouxe à tona as fragilidades da região e as graves consequências econômicas impostas na vida das pessoas que vivem nas florestas e zonas urbanas amazônicas. Além do saldo de milhares de mortes, muitos perderam empregos ou outras fontes de renda informais.
Para minimizar a situação, a Embaixada da França no Brasil foi uma das parceiras que mais se destacou na Aliança Covid Amazonas, doando 48 toneladas ou 10,5 mil cestas básicas e mais de 21,5 mil itens de higiene e saúde para famílias da capital e do interior. Com a colaboração, também foram entregues kits médicos e equipamentos de proteção individual (EPIs), 2,5 mil litros de combustível para apoio emergencial e fomento da produção local, além de sete ambulanchas e 19 canoas. A FAS mobilizou colaboradores e voluntários para distribuir os itens doados às famílias localizadas nas RDS Rio Negro, Piranha, Puranga Conquista e Uatumã, além da Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Negro e em 13 bairros periféricos e quatro iniciativas sociais da zona urbana de Manaus.
Sede da FAS em Manaus (AM) recebe carregamentos de produtos de assistência básica e enche espaços com kits de higiene, alimentos e outros itens de necessidade fundamental – frutos de articulações da Aliança Covid-Amazonas.
Foto: Samara Souza
Na opinião da Superintendente de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades, Valcléia Solidade, a Aliança Covid Amazonas surge com o propósito de integrar o setor público, privado e as organizações sociais para que juntas possam executar estratégias que atendam às populações mais vulneráveis. “A Aliança tem grandes ações sendo implementadas que vão desde estratégias emergenciais até atividades no pós-pandemia. Tudo isso é realizado com o propósito de minimizar os impactos e levar um pouco de conforto para quem está na ponta”.
A distribuição de alimentos em comunidades carentes também sensibilizou sobre os desafios relacionados à pobreza, desigualdade social e segurança alimentar e nutricional. Segundo o Superintendente Geral da FAS, Virgilio Viana, os sinais para que agissem rápido na contenção da covid-19 ocorreram logo quando os casos aumentaram no Amazonas. “A pandemia acelerou um processo que já estava acontecendo no Brasil, que é o aumento da fome e uma volta da extrema pobreza. Por isso, a Aliança tem grande importância para amenizar essa situação. Tivemos também que pensar no pós-pandemia, propondo políticas públicas sustentáveis, principalmente para os povos da Amazônia”.
Cestas básicas são distribuídas na RDS Puranga Conquista e RDS do Rio Negro, com auxílio de membros das associações locais.
Foto: Samara Souza
Vozes ribeirinhas
Os moradores das comunidades Betel e Braga, localizadas na RDS do Piranha, no município de Manacapuru, não dispõem de acesso à internet, nem saneamento básico, e dependem das próprias embarcações, muitas vezes precárias, para o escoamento da produção até a cidade. Além do aumento no número de casos de Covid-19, as famílias também têm sido obrigadas a enfrentar a alta de preços dos alimentos e outros itens essenciais. Como forma de mitigar esses impactos, a FAS entregou a quase 350 pessoas da comunidade 176 cestas básicas, além de aproximadamente 1,5 mil kits de higiene e máscaras.
Ribeirinhos retornam para casa após receberem auxílio em forma de cesta básica na RDS do Piranha.
Foto: Bruno Kelly
No dia das entregas, o presidente da Cooperativa do Piranha, Anezio Soares, enfileirou-se junto com os demais para receber a cesta básica. “Essa ajuda é muito gratificante e é também um resultado do nosso próprio trabalho como comunidade e cooperativa, porque desde sempre a gente vem lutando para conseguir viver em melhores condições e com maior dignidade”. Já na opinião do agente comunitário de saúde da RDS do Piranha, Nedvaldo Brito Barbosa, a ajuda é uma forma de minimizar o impacto econômico sofrido. “O alimento está um absurdo de caro. Com a pandemia, tem algumas coisas que estão custando o dobro do preço e a gente não consegue pagar. E a cesta ajuda muito, porque uma dessas custa mais ou menos R$ 300 em Manacapuru, então já economiza bastante”.
Nedvaldo Barbosa é agente de saúde na RDS do Piranha e, além de receber as cestas básicas, também foi contemplado com equipamentos médicos como oxímetro, testes rápidos, termômetro digital e luvas.
Foto: Bruno Kelly
Uma capital mais humanitária
Em Manaus, o preço da cesta básica sofreu, no mês de novembro, um aumento de 8,5% segundo a Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (CDC/Aleam). O reajuste de preços em outros produtos essenciais, como combustível, também tem prejudicado diretamente quem depende dos rios para escoar a produção agrícola ou para se deslocar até as cidades mais próximas, já que ali predominam as dinâmicas do transporte fluvial.
A realidade das periferias da capital não é muito diferente daquela encontrada em outros centros urbanos latino-americanos, em que as desigualdades sociais são escancaradas por meio de questões como as altas taxas de desemprego, insegurança alimentar, evasão escolar e de criminalidade. Se antes do coronavírus esses espaços já sofriam com situações de abandono por parte do poder público, com a pandemia, as desigualdades foram ainda mais exacerbadas, visto que os bairros periféricos foram os mais atingidos pela crise.
“O aumento dos preços é algo assustador, porque tem que optar pelo que é essencial. Se o filho quer comprar algo, a gente precisa dizer que não dá. E dói muito não poder atender ao pedido do próprio filho”.
Rojefferson é um dos mobilizadores do coletivo Soul do Monte, formado por um grupo de voluntários que têm realizado entregas de cestas básicas para moradores do bairro Monte das Oliveiras, em Manaus.
Foto: Alessandra Marimon
Ao contrário das famílias das classes média e alta, cujas reservas financeiras e empregos estáveis garantem qualidade de vida, as famílias de baixa renda precisam se desdobrar em empregos informais ou auxílios governamentais para garantir a sobrevivência. De acordo com Gabriel Cavalcante, do Programa Cidades Sustentáveis da FAS, que auxiliou na doação das cestas básicas para os bairros de Manaus, o impacto da pandemia tem sido ainda mais cruel para o segundo grupo, já que as pessoas estavam ou desempregadas ou não podiam deixar de trabalhar presencialmente. “Elas não tinham outra alternativa senão sobreviver, mesmo em um momento em que as pessoas precisavam ficar em casa. E quem não tinha renda se via ainda mais nessa situação de precariedade e vulnerabilidade extrema”.
Comunidade Santa Luzia, no bairro periférico Educandos, em Manaus (AM), recebe cestas básicas durante ação da FAS.
Foto: Samara Souza
Apesar de ter uma atuação mais intensa no interior da Amazônia, a FAS, com apoio da Embaixada da França, também amparou 13 bairros da capital amazonense, além de apoiar quatro iniciativas de cunho social. Além das populações periféricas, os locais atendidos são compostos por imigrantes e refugiados, em sua maioria da Venezuela, povos indígenas e pessoas em situação de rua. Segundo Gabriel, o planejamento prévio junto às comunidades urbanas garantiu o sucesso das entregas, além de uma atenção maior às questões alimentares. “Nós mapeamos a parte de nutrição, fizemos um cardápio mais completo e direcionado, com arroz e feijão com quilos a mais e ‘flocão’ de milho para cuscuz e farofa. Nas comunidades indígenas, dado o contexto diferenciado da alimentação, inserimos batatas e frutas”.
Gabriel e equipe realizam a entrega de cestas básicas e kits de higiene no bairro indígena Parque das Tribos, em Manaus.
Foto: Dirce Quintino
O professor e escritor Rojefferson Moraes mora há mais de duas décadas no bairro Monte das Oliveiras, Zona Norte de Manaus, um local onde antes se encontrava uma vasta floresta, mas que agora deu lugar a ocupações irregulares e igarapés poluídos, com falta de saneamento básico e uma infraestrutura inadequada para os moradores. Sem conseguir receber o auxílio emergencial, ele foi um dos que sentiu na pele – e no bolso – a crise em 2020. “O aumento dos preços é algo assustador, porque tem que optar pelo que é essencial. Se o filho quer comprar algo, a gente precisa dizer que não dá. E dói muito não poder atender ao pedido do próprio filho”.
Rojefferson foi uma dessas pessoas que não descansou durante todo o processo de articulação das cestas básicas. Além de mobilizar o coletivo de voluntários Soul do Monte, Rojefferson também esteve na linha de frente para garantir que todos recebessem os alimentos e itens de higiene. “A entrega de cestas básicas precisa ser entendida como uma das ações de impacto positivo dentro da comunidade, porque está aliada a uma situação emergencial, mas também precisa estar atrelada a outras ações. Por isso, nós fizemos rifas e bazares solidários, oficinas de crochê e construímos sala de aula para a preparação de alunos para o Enem. A ideia aqui é promover o resgate social”.
Sobre a Aliança Covid-Amazonas
A iniciativa “Aliança dos Povos Indígenas e Populações Tradicionais e Organizações Parceiras do Amazonas para o Enfrentamento do Coronavírus”, coordenada pela FAS, tem o apoio de 112 parceiros, entre instituições públicas e privadas, empresas e prefeituras. Os recursos arrecadados pela articulação são utilizados para atender as particularidades de cada região do Amazonas no combate à pandemia. As doações para a Aliança podem ser feitas pelo site: https://fas-amazonia.org/ ou e-mail: [email protected].