Fórum virtual apresenta desafios e soluções para a gestão dos recursos hídricos na Amazônia
Com a participação de representantes do Brasil, Peru e Colômbia, evento discutiu políticas públicas, iniciativas corporativas e comportamentos sociais para reduzir os resíduos sólidos flutuantes nos rios amazônicos
11/09/2020
A carência de gestão, fiscalização, recursos e programas de educação ambiental estão ameaçando os rios da Amazônia, que formam a maior bacia de água doce do mundo. O diagnóstico é do relatório técnico preliminar do Projeto Rios Limpos, um estudo sobre a gestão de resíduos sólidos em Manaus (AM), Iquitos (Peru) e Letícia (Colômbia), apresentado nesta semana, durante o Fórum Internacional Rios Limpos, realizado pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (SDSN Amazônia).
O evento virtual, que teve apoio da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ), que é a Agência Alemã de Cooperação, reuniu representantes de governos, empresas, universidades e organizações não governamentais dos três países para debater os desafios e soluções para a conservação dos rios amazônicos.
Segundo o relatório que deu base às discussões do fórum, as estratégias para reverter o atual cenário passam pelo fortalecimento de agentes locais, como comissões municipais de meio ambiente e comitês de gestão de resíduos sólidos; cooperação técnica-política entre os países da Bacia Amazônica, envolvendo governos, empresas e associações de catadores; e a educação ambiental, com programas nas escolas e campanhas de conscientização da população.
“Há uma caminhada nessas propostas que traçamos aqui. Primeiro, você fortalece o nível local, reforça a municipalidade, prepara as cidades para atuar bem no seu nível. Depois, você começa a cooperar ou fortalece essa cooperação e, concomitante a isso, educa ambientalmente os cidadãos”, explicou o consultor técnico do Projeto Rios Limpos, Rafael Ribeiro.
Para aprofundar os pontos identificados pelo estudo, bem como debater o cenário e as perspectivas sobre os resíduos sólidos flutuantes na região, foi realizado um painel multissetorial envolvendo participantes do Instituto Amazónico de Investigaciones Científicas (SINCHI), Secretaria Municipal de Limpeza Urbana de Manaus (Semulsp), Coca-Cola Brasil, Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Instituto de Investigaciones de la Amazonía Peruana (IIAP).
Somente em Manaus, em 2019, foram coletadas mais de 11 mil toneladas de resíduos sólidos em igarapés, gerando um custo de aproximadamente R$ 16 milhões aos cofres públicos, segundo apontou o subsecretário da Semulsp, Eisenhower Campos. “Precisamos buscar parcerias, tecnologia e eficiência para a prestação desse serviço, e isso só pode ser feito se a gente tiver o apoio da iniciativa privada, dos órgãos de fomento à proteção do meio ambiente. Precisamos dividir responsabilidades entre os fabricantes, consumidores e a sociedade civil. Precisamos buscar apoio e cooperação técnica entre os municípios, estados e até mesmo os países, como estamos fazendo agora”, disse.
Outros mecanismos propostos para a redução dos resíduos sólidos – especialmente das garrafas PET – nas três cidades envolvidas, foram o fortalecimento da coleta seletiva e o investimento em uma indústria alternativa para dar nova destinação a estes materiais. “A questão principal é desviar o caminho do PET, como de todos os outros resíduos, dos rios. Criar uma cadeia que o leve a outra utilidade, inclusive gerando renda”, afirmou o professor da UFAM, Marcos Castro.
Associações recicladoras
O segundo painel do fórum, mediado pela analista de Educação Ambiental da FAS, Kelly Souza, reuniu representantes de associações recicladoras. A presidente da Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis Nova Recicla de Manaus, Suelen Cardoso, destacou a relevância do serviço ambiental prestado pelos catadores e defendeu a necessidade de se desenvolver ações práticas que gerem visibilidade e melhores condições de trabalho. “Fazer um trabalho coletivo para desenvolver essas políticas públicas e melhorar a qualidade de vida do ser humano, dos catadores”, disse.
Para a diretora executiva da ONG peruana Ciudad Saludable, Paloma Roldan, é importante destacar que a reciclagem ajuda a melhorar não somente a qualidade de vida da família do catador, mas também a qualidade de vida e qualidade ambiental da comunidade onde ele está inserido. “E, nesse sentido, ter a perspectiva de uma sinergia regional amazônica é trabalhar com planos de desenvolvimento combinados e mostrar às autoridades locais seu valor como dinamizadores, e entender à nível das empresas que a logística reversa tem um valor muito maior se incorporar às organizações de recicladores realmente como atores de todo o processo. E, por último, como uma sinergia extremamente importante, precisamos afirmar que a voz amazônica é uma voz da mulher amazônica recicladora”, pontuou.
Negócios sociais
O evento também teve espaço para o diálogo com negócios sociais, para entender como eles podem contribuir para resolver a destinação dos resíduos sólidos. O painel trouxe experiências como a da líder comunitária Maria Cristina Pereira, presidente do Projeto de Restauração Ecológica e Urbanização Sustentável (Reusa).
Após uma difícil separação do seu casamento, Dona Cristina, como é chamada, só conseguiu comprar uma casa à beira do igarapé e entrou em depressão quando se viu rodeada pelo lixo e mau cheiro. Foi então que decidiu mudar a realidade do lugar onde vivia, impulsionando uma verdadeira transformação socioambiental na região do rip-rap do Igarapé do Gigante, no bairro da Redenção, zona centro-oeste da capital amazonense.
“Comecei a dar aula de crochê na comunidade para as mulheres recém-separadas”, contou, ressaltando que depois de participar da Virada Sustentável Manaus, festival de sustentabilidade correalizado pela FAS, o projeto ganhou propósitos maiores. “Já não era só ensinar, era trabalhar para restaurar o rip-rap que estava perdido”, disse.
Para ela, o desenvolvimento de projetos que promovam o envolvimento da comunidade na conservação dos recursos hídricos é essencial para se alcançar as metas propostas no fórum. “As parcerias também. Porque só uma pessoa, como vocês sabem, não dá”, completou.
Engajar a sociedade na resolução do problema também é a missão do Grupo Ambiental Tierra Amazónica (Gatia), do Peru. A organização, que surgiu em 2011, atua com objetivo de gerar consciência socioambiental em pessoas que enfrentam a contaminação por resíduos sólidos e a escassa cultura ambiental na região de Loreto, inspirando que elas se tornem agentes da mudança que desejam ver em sua cidade.
Uma das estratégias adotadas é mostrar que o lixo pode ser uma oportunidade de negócio. “Com higiene e criatividade, podemos diminuir a contaminação por resíduos sólidos ao utilizar essa matéria-prima em alguns produtos que possam ser comercializados.
Assim também, podemos demonstrar que ao envolver a população de uma comunidade, podemos fazer dessa comunidade que estava contaminada, através de capacitações, uma comunidade turística; uma comunidade em que são os moradores aqueles que a cuidam”, explicou a CEO do Gatia, Ivonne Bocanegra.
Na opinião do coordenador de Novos Negócios da EuReciclo e Cofundador do Plástico Precioso Rio, Bernardo do Amaral, também é necessário gerar renda compartilhada e autonomia financeira para os indivíduos envolvidos nesse processo. Ele citou o exemplo da EuReciclo, organização que certifica a logística reversa de embalagens pós-consumo, gerando incentivos para elevar as taxas de reciclagem no país. “Hoje, dos mais de 60 operadores de triagem que a gente tem na nossa cadeia, onde fazemos o lastro das nossas operações – que são nossos parceiros-chaves – representamos de 15 a 30% de acréscimo na receita dessas cooperativas só com o nosso sistema de compensação ambiental. Isso é muito significativo e transformador para esses operadores, para esses guerreiros da reciclagem”, ressaltou.
Cooperação Sul-Sul
Encerrando a programação, o último painel convidou representantes governamentais dos três países para uma troca de experiências, na perspectiva de impulsionar as tratativas para a criação de um acordo de cooperação internacional que promova o manejo sustentável e a redução dos resíduos sólidos flutuantes na Amazônia.
Um dos pontos de destaque da conversa foi a capacitação de agentes locais para a gestão, coleta e destinação dos resíduos sólidos, com exemplos exitosos em Manaus e no distrito Belén, no Peru.
Para a subgerente de Gestión Ambiental de la Gerencia de Servicios Públicos, Gestión Ambiental y Desarrollo Empresarial de la Municipalidad Distrital de Belén, Flor de Azucena Paredes Vela, esse trabalho deve ser realizado em conjunto com as comunidades amazônicas. “Temos um grande trabalho, é certo. É difícil, porém não é complicado. Podemos fazê-lo de mãos dadas com população, com as organizações de base que podemos ter em cada uma das bacias e, sobretudo, ajudando-os a ver a importância de valorizar nossos resíduos de uma forma positiva para que eles entendam que se cuidamos do nosso ambiente também estamos melhorando nossas condições de vida”, ressaltou.
O secretário municipal de Gestão de Limpeza Pública de Manaus, Paulo Farias, reforçou a necessidade de compromisso do setor empresarial com o sistema de logística reversa. Segundo ele, um dos grandes gargalos da coleta seletiva em Manaus é a ausência de mercado para determinadas embalagens autoidentificadas como recicláveis.
“O consumidor compra um produto achando que aquela embalagem é reciclável, a Prefeitura coleta e leva para o galpão dos catadores, mantém o galpão, e depois tem que buscar novamente (as embalagens que não puderam ser recicladas) e levar para o aterro. Isso é estelionato ambiental”, afirmou, destacando ainda que de acordo com o mais recente relatório feito por um grupo de catadores, 49% das embalagens oriundas da coleta seletiva autoidentificadas como recicláveis não tiveram mercado.
Farias também informou que a Semulsp está trabalhando para identificar e responsabilizar os fabricantes. “Queremos que os fabricantes encarem esse problema e caminhem objetivamente para apresentar uma solução. Não cabe aos catadores criar mercado para esses polímeros, isso vai além das possibilidades deles. Cabe sim ao fabricante criar um mercado que automaticamente vai gerar um fluxo de retorno dessas embalagens, e é isso que estamos fazendo atualmente”, concluiu.
Além disso, foram discutidos o papel da educação e conscientização ambiental, e a necessidade de uma gestão compartilhada dos recursos hídricos na região.
“Cada vez mais, o papel dessas agendas de recursos hídricos, no caso do Amazonas, deve exceder as fronteiras. Vale lembrar que o Amazonas acaba sendo o fim da linha da maioria das atividades produtivas dos rios internacionais que cortam a Bacia Amazônica. Então, implementar esses processos de gestão compartilhada são os caminhos mais rápidos e seguros para garantirmos a sustentabilidade desses recursos que estão sendo tão afetados hoje em dia”, destacou o secretário de Estado do Meio Ambiente do Amazonas, Eduardo Taveira.
A importância de desenvolver uma colaboração internacional também foi destacada pelo secretário de Agricultura, Medio Ambiente y Productividad del Departamento del Amazonas, na Colômbia, John Valencia. “Devemos começar a articular esforços, não somente binacionais, mas talvez trinacionais, que nos permitam fazer um manejo adequado de resíduos não à nível local, e sim à nível regional, como uma região amazônica”, afirmou.
O intercâmbio de informações promovido pelo fórum deixou aberto o caminho para a construção de um acordo amazônico de cooperação internacional para a gestão integrada de resíduos sólidos na região. A iniciativa deve ajudar a superar os desafios apontados pelo relatório técnico do Projeto Rios Limpos, que fundamentou a realização do evento. O estudo será lançado nas próximas semanas.