REPORTAGENS
16/03/2021
Por Alessandra Marimon
Imagine viver longe da cidade, próximo a uma floresta tropical e às margens de um grande rio, dependendo diretamente dos recursos naturais. Agora imagine, em plena pandemia, ter que se deslocar de barco durante horas até o hospital ou clínica mais próxima só para ser atendido. Essa é a realidade de milhares de comunidades ribeirinhas e indígenas que, além das distâncias, enfrentam entraves relacionados ao acesso à energia elétrica e à internet. Para alterar esse quadro, a Fundação Amazônia Sustentável (FAS) e parceiros, entre eles a Embaixada da França, têm promovido ações de telessaúde para realizar teleatendimentos, webpalestras e teleorientações, envolvendo oito especialidades da área de saúde. Mais de 3,5 mil pessoas foram beneficiadas até agora.
Desde a implementação do projeto, iniciada em maio de 2020, foram instalados 32 pontos de telessaúde, com internet e placa solar para auxiliar no acesso à energia elétrica, em 24 unidades de conservação (UCs) e em três terras indígenas (TIs) na Amazônia. Até o fechamento da reportagem, foram realizados 127 atendimentos via internet com diversos especialistas: fonoaudiólogos, nutricionistas, assistentes sociais, educadores físicos, fisioterapeutas, enfermeiros, médicos e psicólogos. A previsão para 2021 é de que pelo menos mais 97 pontos de telessaúde sejam implementados em áreas de proteção (TIs e UCs).
Grande parte das comunidades ribeirinhas ainda depende de geradores de energia elétrica, mas a instalação de placas solares ajudou a alterar esse quadro, facilitando a conectividade e o atendimento à saúde.
Foto: Samara Souza
A proposta, idealizada por meio da “Aliança Covid Amazonas” – iniciativa criada pela FAS em conjunto com 119 parceiros –, foi uma oportunidade de enfrentamento da Covid-19, principalmente ao evitar o deslocamento de pessoas a locais aglomerados e de difícil acesso, reduzindo riscos de contaminação e propagação da doença.
Na comunidade indígena Três Unidos, localizada na Área de Proteção Ambiental do Rio Negro, a artesã Sebastiana Diniz sentiu os efeitos do projeto de telessaúde após a instalação da internet, destinada aos teleatendimentos, e de painéis solares para geração de energia. “Antes quando alguém precisava de um atendimento ou tinha que tomar uma injeção, não tinha como fazer, porque estava tudo escuro. E agora não, qualquer hora que a gente chega aqui tem energia. Se precisar de um psicólogo, tem como chamar para atender a gente”. Três Unidos conta com um Polo Base, onde ocorrem os atendimentos, que variam entre webpalestras, atendimentos online feitos por profissionais da saúde e teleorientações com agentes comunitários de saúde das comunidades.
Graças à instalação de internet e placas de energia solar, agentes comunitários de saúde conseguem se comunicar remotamente com médicos e outros profissionais.
Foto: Samara Souza
As áreas de proteção contempladas com pontos de telessaúde receberam instalações de internet e painéis de energia solar, além de doações de equipamentos como notebooks e EPIs. Para o coordenador do Programa Saúde na Floresta da FAS, Luiz Castro, o Telessaúde é um projeto inovador que tem desbravado as possibilidades da implementação de um sistema de saúde eficiente, a partir do uso de tecnologias da informação e comunicação. “Agora, a Amazônia está entrando em um momento de maior conectividade e informação e de aprender a lidar com essa nova realidade da pandemia. E os parceiros perceberam a importância dos pontos de telessaúde como ferramentas a mais para a saúde”.
Antes de serem atendidos, os moradores passam por uma triagem com os agentes comunitários de saúde que ficam responsáveis por analisar e anotar os principais sintomas.
Foto: Rodolfo Pongelupe
Saúde mental
Em tempos de pandemia, comunidades indígenas e ribeirinhas têm sentido os efeitos da solidão por causa do isolamento físico, somado às perdas de entes queridos e à situação de fragilidade econômica. Consequentemente, sentimentos como ansiedade, angústia, tristeza e depressão vêm à tona. A FAS preocupou-se em apoiar o fornecimento de um serviço de atendimento psicológico remoto que atendesse às “dores da alma” dessa população de forma acolhedora. Tudo tem sido feito gratuitamente, já que a renda é um fator determinante para o acesso a esse tipo de tratamento: quanto maior a renda, maior o acesso.
À medida em que a FAS implementa os pontos de telessaúde, a Fundação Universidade Aberta da Terceira Idade (FUnATI) provê os profissionais da psicologia para realizarem os teleatendimentos. O psicólogo Ivo Jung, da FUnATI ficou responsável pelas consultas, feitas diretamente do Rio Grande do Sul. Segundo ele, uma das primeiras preocupações surgidas no início da pandemia foi uma possível intensificação de problemas ligados à saúde mental. “É algo que se agrava quando as pessoas estão em situações difíceis e, quanto mais vulnerável é uma comunidade, mais esses problemas surgem. A onda de depressão e ansiedade tem aumentado muito e com a pandemia nós decidimos dar prioridade à saúde mental”.
FAS realiza teleorientação para profissionais de saúde na comunidade Três Unidos, na APA do Rio Negro.
Foto: Dirce Quintino
Em uma das teleorientações, o consultor em saúde da FAS, Rodrigo Pereira, explicou sobre as melhores formas de utilizar os aparelhos de triagem doados às comunidades, como oxímetro, termômetro digital e medidor de pressão e de glicose. Segundo ele, a intenção também era desmistificar informações falsas e esclarecer dúvidas. “Também acolhemos algumas das principais demandas. Muitos ACS, por exemplo, já falaram de acidentes frequentes que ocorrem, como os ofídicos, acidentes relacionados a picadas de cobras, e eles precisam estar preparados para lidar com isso”.
“Mais de 80% das pessoas na minha comunidade apresentaram sintomas de Covid, e as webpalestras me ajudaram a identificar os casos mais rapidamente e a tomar providências logo.”
Na mesma teleorientação, uma das dúvidas levantadas por um dos participantes, o ACS Lázaro Correia das Chagas, morador da comunidade Abelha, na RDS do Juma, foi a respeito do ambiente da consulta. “A gente precisa de um local reservado para as pessoas se sentirem à vontade para, por exemplo, tirar a roupa durante os exames sem se preocupar”, afirmou, logo depois sendo complementado por Rodrigo, que garantiu que esses espaços serão disponibilizados e nenhum paciente deverá ser exposto. Lázaro também elaborou o formulário de triagem, que contém as informações necessárias sobre os pacientes, e discutiu na reunião sobre o documento. “Uma das coisas que vou ter que melhorar é sempre anotar o problema e o motivo de o paciente querer atendimento”.
Treinamento online, executado em parceria com a Universidade do Estado do Amazonas, ensina agentes comunitários de saúde a utilizar o oxímetro e outros EPIs da forma correta, com dicas e informações úteis.
Foto: Samara Souza
A Reserva Extrativista (Resex) Catuá-Ipixuna foi uma das seis unidades de conservação que recebeu webpalestras com profissionais da UEA. Andreane de Sena é agente comunitária de saúde da comunidade Bela Conquista, localizada na reserva, e participou dos encontros que envolveram temas como primeiros socorros, diagnóstico da Covid-19 e controle de diabetes. “Uma das coisas que eu aprendi e procurei colocar em prática foi como detectar a situação de saúde de cada comunitário. Mais de 80% das pessoas na minha comunidade, por exemplo, apresentaram sintomas de Covid, e as webpalestras me ajudaram a identificar os casos mais rapidamente e a tomar providências logo”.
Teleatendimentos
Para auxiliar o trabalho de agentes comunitários de saúde e técnicos de enfermagem da comunidade Tumbira, durante e após a pandemia, a FAS executou uma ação que batizou de “telemutirão” com profissionais de saúde para atender remotamente pacientes da comunidade localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro. A ação contou com a mobilização de profissionais da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e da Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA) de Iranduba.
A agente comunitária de saúde Krisiane do Nascimento auxilia moradores da comunidade do Tumbira a realizarem um teleatendimento. Alguns experimentaram a modalidade pela primeira vez.
Foto: Rodolfo Pongelupe
Em comunidades que enfrentam inúmeras barreiras de acesso à energia elétrica, conectar-se à internet para se consultar com tantos profissionais foi um trabalho que demandou esforços coletivos. Embora combater os efeitos da Covid-19 seja uma das metas do projeto, prover serviços clínicos de qualidade também está entre um dos principais escopos da iniciativa. Segundo a supervisora do Programa Saúde na Floresta, Kelly Souza, o “telemutirão” criou uma maneira rápida e eficaz de acesso a esses serviços. “Não foi só apertar um botão e ligar o computador para realizar o atendimento. Houve um processo longo, de meses, com toda uma articulação para criar pontes e conectar os pontos de telessaúde”.
“Tudo que é novo assusta e antes os médicos e enfermeiros vinham presencialmente quase todo mês, então foi um impacto receber a notícia de que os atendimentos seriam pelo computador. Mas eu vi que deu certo e a parede que eu tinha formado dentro de mim se destruiu hoje”.
O médico clínico geral Carlos Alejandro e o enfermeiro Diego Queiroz participaram juntos da ação e realizaram atendimento online diretamente do município de Iranduba/AM. O médico, natural de Cuba, aprovou prontamente o teleatendimento e afirmou que, em 30 anos de profissão, foi a primeira vez que realizou esse tipo de atendimento, mas que pretende continuar atendendo pacientes via computador. De acordo com o enfermeiro, o projeto serviu para complementar a saúde municipal, mas afirmou que alguns ajustes ainda precisam ser feitos. “Houve certa dificuldade de comunicação com outros profissionais por conta de falhas de conexão e, além disso, alguns pacientes precisavam de uma intervenção mais rápida com medicamentos. Mas, no geral, a experiência foi positiva, o teleatendimento rompeu barreiras logísticas e representou uma economia de deslocamento para todos”.
Mas não foi apenas o processo de logística, infraestrutura, conexão e aquisição de equipamentos que mostrou-se desafiante para a ação. Uma modalidade nova e com algumas desvantagens – como a incapacidade de exames físicos e a falta de familiaridade com novas tecnologias – gerou, em princípio, um sentimento de relutância das pessoas. É o que explica a agente comunitária de saúde, a jovem Krisiane Brito do Nascimento, uma das responsáveis por acompanhar o processo: “Nem todo mundo entende e tem gente que diz que não funciona por ser um atendimento a distância. Mas nós corremos atrás, avisamos a comunidade, conseguimos trazê-los e ficamos felizes por essa conquista”.
A professora Inês Alencar e o filho Nicolas realizam um atendimento remoto com médicos do município de Iranduba (AM).
Foto: Rodolfo Pongelupe
O que antes era visto com apreensão pela professora Inês Cristina Alencar, agora transformou-se em uma experiência a ser repetida. Depois que resolveu romper o preconceito, Inês levou pela primeira vez o filho de seis anos para uma consulta online com um psicólogo e um fonoaudiólogo. “Tudo que é novo assusta e antes os médicos e enfermeiros vinham presencialmente quase todo mês, então foi um impacto receber a notícia de que os atendimentos seriam pelo computador. Mas eu vi que deu certo e a parede que eu tinha formado dentro de mim se destruiu hoje”.
Sobre a Aliança Covid-Amazonas
A iniciativa “Aliança dos Povos Indígenas e Populações Tradicionais e Organizações Parceiras do Amazonas para o Enfrentamento do Coronavírus”, coordenada pela FAS, tem o apoio de 119 parceiros, entre instituições públicas e privadas, empresas e prefeituras. Os recursos arrecadados pela articulação são utilizados para atender as particularidades de cada região do Amazonas no combate à pandemia. As doações para a Aliança podem ser feitas pelo site: fas-amazonas.org ou e-mail: [email protected].