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Obras de tecnologia social transformam a realidade da periferia de Manaus

REPORTAGENS

31/03/2021

Por Alessandra Marimon

Enquanto os grandes centros urbanos investem em obras de revitalização de áreas consideradas nobres e turísticas, as zonas periféricas geralmente são pouco lembradas. É o caso de bairros como Parque das Tribos, Monte das Oliveiras e Redenção, situados na periferia de Manaus (AM) e uns dos mais afetados pela covid-19. Para reverter essa conjuntura e auxiliar na busca por soluções de tecnologia social, a Fundação Amazônia Sustentável (FAS), em parceria com a Embaixada da França, tem promovido obras arquitetônicas nas três localidades manauaras. É uma forma de impulsionar a geração de renda e a cidadania, fortalecer identidades e auxiliar no combate à pandemia.

A iniciativa surgiu por meio da “Aliança Covid Amazonas”, criada pela FAS em conjunto com 120 parceiros – entre instituições, ONGs, empresas e prefeituras – para o enfrentamento da covid-19. O assistente de projetos da FAS, Gabriel Cavalcante, afirma que a consolidação do sonho de realizar obras estruturantes em bairros carentes de Manaus iniciou-se com a sede do Reusa, um projeto voltado para a restauração ecológica e a urbanização sustentável no bairro da Redenção. “Desde o ano passado, os projetos ganharam proporção maior e conseguimos estreitar mais laços, mobilizar as comunidades e unir forças para melhorar a realidade das pessoas”.

Infográfico feito pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS).

O “Malocão” é uma das obras de maior destaque no bairro Parque das Tribos.

Foto: Samara Souza

Um bairro indígena

Fundado em 2014 por um casal de duas etnias diferentes, Baré e Kokama, o Parque das Tribos é o lar de 35 etnias. Considerado o primeiro bairro indígena de Manaus, o local é também um dos contemplados por cinco obras estruturantes que se iniciaram em 2020: Malocão, Casa das Mulheres, restauração ecológica de um lago, reforma de uma escola e criação de um centro de saúde. Obras como o “Malocão”, que consiste em uma maloca comunitária, são reivindicações antigas dos moradores, como lembra uma das lideranças e fundadoras do bairro, a cacica Lutana Kokama.

Grande parte dos moradores do Parque das Tribos trabalha com vários tipos de artesanato e não tem um emprego formal.

Foto: Samara Souza

“Anos atrás o Parque das Tribos ainda não era um bairro, era um local de roçado onde o meu pai fazia plantio. Quando ele morreu, a terra ficou devoluta e muito indígena veio para a cidade em busca de estudo e trabalho, então foi criado, junto com a Funai, um projeto de moradia e de construção de uma maloca, que seria esse espaço pra fazer festas e danças culturais”, diz Lutana.

A ideia saiu do papel, segundo a cacica, e se concretizou em um grande espaço para que as três dezenas de etnias indígenas do bairro pudessem expor trabalhos artesanais, culinária indígena, danças e apresentações típicas. “Com a maloca nós queremos trabalhar com vendas e ter um recurso financeiro, porque é difícil conseguir emprego por aqui. Algumas mulheres trabalham como empregadas domésticas, mas ainda assim muita gente não consegue trabalho, porque sofre discriminação por ser indígena”.

Jovens artistas auxiliam no “retoque final” do Malocão por meio de pinturas indígenas que retratam as histórias dos povos e fortalecem a identidade das dezenas de etnias residentes no bairro.

Foto: Samara Souza

Até agora, a obra mais avançada é a da maloca, que foi adaptada para a realidade urbana – ao invés de madeira e palha, é feita de estruturas de ferro e aço – e agora passa por um “retoque final”. Jovens e adolescentes têm trabalhado incansavelmente para deixar a marca de seus povos no Malocão, com pinturas e grafismos que representam a diversidade indígena do bairro e suas histórias. Eliza Sateré-Mawé é uma das voluntárias e responsável por supervisionar as pinturas. Segundo ela, “Os artistas vêm com seus grafismos e suas culturas para que a gente possa resgatar e se familiarizar mais com o local. Mas as estruturas de ferro são boas porque são mais duráveis”.

Outras obras, como a Casa das Mulheres e o centro de saúde, estão em andamento e devem ser inauguradas ainda neste semestre.

Foto: Samara Souza

Aos 23 anos de idade, a artesã Shirley Araújo, da etnia Baré, está entre os jovens selecionados para realizar as pinturas do Malocão. Segundo ela, são altas as expectativas para a abertura do Malocão e das outras obras entre os moradores do bairro. “Eu espero muito que a minha pintura traga a curiosidade da história que eu reproduzi e que as pessoas possam chamar as outras para conhecer o espaço”, diz. O fato de haver um espaço próprio para a confecção e exposição de artesanatos, segundo Shirley, também pode levar a uma reaproximação com a cultura indígena. “Muitas mulheres não sabem mais trabalhar com sementes específicas no artesanato, e tudo isso vai chegar agora com o incentivo da maloca e da Casa das Mulheres”.

Com uma população de mais de 45 mil habitantes, o bairro Monte das Oliveiras está situado na zona Norte da cidade de Manaus.

Foto: Samara Souza

Um galpão do bem

Se a cadeia de colinas de Jerusalém recebeu o nome Monte das Oliveiras por causa das oliveiras que cobriam as encostas, o bairro homônimo de Manaus já faz alusão ao local bíblico onde Jesus Cristo teria proferido um de seus discursos. É também fruto de uma luta por moradia popular travada nos anos 80, sob a liderança da ativista e missionária Irmã Helena Walcott. O reconhecimento só viria uma década depois, em 1992, com a fundação oficial do bairro e a criação da primeira associação comunitária do local.

Foi também naquela mesma época que o professor Rojefferson Moraes, mobilizador social do coletivo Soul do Monte, se instalou na região. Graças ao empenho de 19 voluntários e parceiros, o coletivo conseguiu se estabelecer em 2020. “O Soul do Monte é uma iniciativa que surge da necessidade de ter uma frente coletiva formada por e para comunitários, um espaço que agregue atividades culturais e educativas. E o nome Soul do Monte nos remete à ideia de pertencimento, mas também de alma, de essência”.

Rojefferson cedeu o terreno da casa dele para criar o espaço “Galpão do Bem”, uma iniciativa cidadã que inclui atividades culturais e educativas aos moradores do bairro.

Foto: Samara Souza
Infográfico feito pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS).

Em 2019, a FAS já havia atuado no bairro Monte das Oliveiras com uma ação durante a Virada Sustentável de Manaus. A ideia era transformar o bairro em um espaço semelhante ao Reusa, o projeto de restauração ecológica, mas a presença de facções voltadas para o tráfico de drogas impediu a consolidação da iniciativa. A frustração, no entanto, duraria pouco. Em 2020, a FAS recebeu da Embaixada da França os recursos necessários para estruturar o Galpão do Bem, um espaço que irá acolher moradores da comunidade em atividades culturais e educativas, tais como apresentações de teatro, aulas de reforço, fotografia, capoeira e costura.

Antes da covid-19, o foco das atividades do Soul do Monte ainda estava sendo definido. “De início, a gente queria trabalhar com educação para crianças e jovens, com aulas de reforço e cursos pré-vestibular. Só que aí veio a pandemia e caímos num limbo”. Segundo Rojefferson, a maioria dos moradores do Monte das Oliveiras, incluindo voluntários do projeto, trabalha informalmente e, por isso, acabaram fortemente afetados pelo contexto. “Mas quando houve a constituição da Aliança, a FAS me procurou para fazer parte e hoje temos o Galpão do Bem e voluntários comprometidos a transformar a comunidade”.

O aprimoramento do espaço, que antes era improvisado, foi comemorado por um dos colaboradores e amigo de Rojefferson, Pedro Lobato Neves. Ele coordena um projeto que busca resgatar crianças e adolescentes da vulnerabilidade e da criminalidade, levando-os para praticar futebol. Pedro convive de perto com as consequências da falta de políticas públicas e já chorou a perda de amigos e colegas que foram assassinados. “Só o futebol em si não ajuda a ocupar a mente da criança, porque a criminalidade é grande. Então eu tenho certeza que esse espaço, junto com o meu projeto, vai proporcionar muitas melhorias para a comunidade”, afirma.

Pedro já perdeu amigos e conhecidos para a criminalidade, mas não desistiu de lutar para garantir a continuidade de projetos sociais.

Foto: Samara Souza

Uma das voluntárias do Galpão do Bem é a costureira Euronice Quirino da Silva, que ficará responsável por ministrar aulas de costura no espaço. “Costura é uma coisa muito importante e dá dinheiro, vai ajudar na despesa, e se a gente tirar uma hora do dia para se dedicar ao próximo, a gente vai se sentir bem”. Mãe de um menino de cinco anos e viúva de um homem que foi morto em consequência da criminalidade, Euronice sonha em uma vida mais oportunidades sociais e educacionais para o filho. “Eu quero que ele participe das aulas de reforço, porque eu quero criá-lo num ambiente bom para que depois ele não se envolva com coisas que não valem a pena”.

Euronice é moradora do bairro Monte das Oliveiras e atua como costureira voluntária no Galpão do Bem.

Foto: Samara Souza

Restauração ecológica e urbanização sustentável

Assim como o Parque das Tribos e o Monte das Oliveiras, o bairro da Redenção é resultado de ocupações que se iniciaram ainda nos anos 70, e hoje é reflexo da desigualdade social na cidade. Os problemas envolvem desde altas taxas de desemprego e informalidade, poluição de igarapés, doenças relacionadas à falta de saneamento, até a alta mortalidade por covid-19.

Por outro lado, a Redenção também é lar do Projeto de Restauração Ecológica e Urbanização Sustentável na Amazônia, o Reusa, que beneficia mais de 30 famílias com ações de reciclagem, capacitação profissional, artesanato e conscientização ambiental. Segundo define uma das idealizadoras e atual coordenadora do projeto, Maria Cristina Pereira da Silva, a dona Cris, o Reusa é “um ponto de encontro que reúne educação, saúde, sustentabilidade e geração de renda em um só lugar”.

O Projeto Reusa tem como propósito resgatar pessoas da vulnerabilidade econômica e oferecer alternativas sustentáveis de geração de renda.

Foto: Robert Coelho

Dona Cris está animada com o início das obras na sede, que contemplam a reforma de uma ponte próxima ao local e a resolução de problemas estruturais da construção que vão desde fiação elétrica até infiltrações. “A ponte é uma das maiores prioridades, porque tem crianças que circulam e mães que precisam ir ao supermercado. A primeira ponte que fizemos acabou se desmanchando e uma pessoa chegou até a cair, não se machucou, mas foi um alerta”, comenta. Feita de materiais recicláveis, a sede de três andares do Reusa também precisa de reformas. “Tem lugares que molham lá dentro, estamos sem energia elétrica e temos problemas com pombos no terceiro andar”.

O bairro da Redenção ainda sofre com a poluição de igarapés, e Dona Cris luta diariamente para tentar frear o acúmulo de lixos no local.

“O Reusa mudou a vida de todos. O pessoal tem orgulho da sede e respeito por mim. Eu me supero com tudo que acontece e com cada pessoa que aprende algo aqui. Essa é minha grande inspiração para viver e cuidar deste local” – Dona Cris.

Ela espera romper essas barreiras para continuar com as atividades cotidianas do Reusa, que foram fortemente afetadas pela pandemia, mas encontram caminhos para se reinventarem. “Essa pandemia pra nós foi uma prova muito grande, a gente perdeu muitos amigos. Mas nós não paramos: além do trabalho de reciclagem, nós fizemos merenda para distribuir na porta dos hospitais, costuramos EPIs [máscaras e roupas de TNT] e doamos tudo para quem precisava”.

Para auxiliar no combate à pandemia, as mulheres do Reusa confeccionaram máscaras e outros itens importantes para conter a transmissão.

Foto: Robert Coelho

A história do Reusa se confunde com a de Maria Cristina, quando chegou ao bairro deprimida e com poucas perspectivas. Logo, teve a ideia de dar aulas de crochê e sentiu que deveria agir para parar a poluição do igarapé. “Hoje são 30 pessoas na sede, a maioria mulheres, trabalhando e aprendendo a abrir o próprio negócio. Trabalhamos com panos, papelão, vidro, garrafas, plástico e tudo o que der para ser reaproveitado para criar novos usos. Eu costumo dizer que a gente traz do lixo e leva para o luxo, porque é assim que a gente ganha dinheiro e sobrevive”.

Dona Cris afirma que um dos maiores desafios é conscientizar as pessoas sobre a importância de reaproveitar materiais e de jogar lixo nos locais adequados.

Foto: Samara Souza

Uma das participantes e colegas de dona Cris, Leni Lima, atua há quatro anos no local e já recebeu uma casa nova, doada por um grupo de amigos do projeto. “Eu vivia numa casa de madeira que acabou se destruindo com o tempo e eu não tinha motivos para sorrir. Um dia me disseram que eu fui escolhida pra ganhar uma casa totalmente nova e eu fiquei sem acreditar. Eles derrubaram a velha e construíram a nova e eu fui reconstruída junto com a casa, porque hoje me sinto uma nova mulher, batalhadora, que cuida dos oito filhos e que agora pode realizar outros sonhos”.

As mulheres são maioria no projeto e trabalham, principalmente, com artesanato e costura.

Foto: Robert Coelho

Em todos os bairros mencionados, as obras têm sido realizadas sob a supervisão de arquitetos e engenheiros. Entre os profissionais responsáveis está o arquiteto Sérgio Santos, especialista em urbanização sustentável. Segundo ele, a arquitetura é um agente de união e de transformação social e detém um papel primordial no fortalecimento comunitário. “O lado social é super importante, pois faz uma total diferença na vida deles. É uma forma de ajudar a tirar da vulnerabilidade e de valorizar o trabalho que realizam”.

Mais autonomia, dignidade e empoderamento aos moradores. Esse é o balanço feito pela coordenadora da agenda Cidades Sustentáveis da FAS, Cristine Rescarolli, ao olhar para os resultados que deverão ser conquistados. “As obras possuem finalidades que vão além das estruturais. Esses locais vão possibilitar a realização de oficinas de artesanato e empreendedorismo, levando à geração de renda, assistência básica e à execução de projetos de educação ambiental e de prevenção de risco. Além disso, serão locais de acolhimento e confraternização (assim que possível), que ficarão como legados. Entregar obras como essas nos deixa extremamente felizes e satisfeitos!”.