Censo da FAS e Unicef revela que 97% das comunidades ribeirinhas não tem acesso a internet
10/12/2018
Levar um ensino de educação de qualidade aos mais longínquos recantos do país ainda é um desafio árduo no Brasil em pleno século XXI. Regiões mais pobres e afastadas, esquecidas pelo poder público, são as que mais sofrem. Salas de aula precárias e abafadas, sem nenhuma climatização, serviço irregular de abastecimento de água e energia nas escolas, merenda escolar escassa ou inexistente e até carência de professores e gestores é comum em pontos isolados no país. Tal realidade é bem parecida com o que se vive no interior do Amazonas. Ou pior.
Desvendar o cenário atual da educação rural no interior do Estado foi que inspirou pesquisadores da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) a desbravarem as áreas mais profundas de cinco municípios amazonenses – Itapiranga, Maraã, Maués, Novo Aripuanã e Uarini – e conhecer a fundo o que existe e o que não existe sobre o ensino de crianças e adolescentes nessas localidades.
O resultado desse levantamento de informações foi o que gerou a publicação “Recortes e Cenários Educacionais em Localidades Rurais Ribeirinhas do Amazonas”, uma espécie de “censo escolar da floresta amazônica” que foi lançado nesta semana em Manaus, durante o “Seminário Internacional Acesso e Conclusão da Escola Secundária: os desafios e possibilidades do campo”, organizado pelo Unicef e que reuniu profissionais e especialistas em educação de todo o país na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Características únicas da educação ribeirinha no Amazonas, diagnosticadas pelo estudo em números e depoimentos, e levantadas usando um questionário do Censo Escolar do Inep – e também adaptadas às especificidades da região, agora são públicas e podem servir para estudos científicos sobre educação e, principalmente, para a criação de políticas públicas voltadas ao ensino rural no Amazonas. Esse relatório amostral da educação rural amazonense está disponível para download gratuito no site da Fundação Amazonas Sustentável (FAS).
“Esse documento tem o propósito de mostrar de maneira clara, com números e com depoimentos, os desafios da educação ribeirinha. O nosso objetivo é que esse documento possa servir de inspiração para mudança de políticas públicas”, ressaltou o superintendente-geral da FAS, Virgílio Viana, durante o lançamento da publicação. “Vamos apresentar esse documento ao novo governo estadual e aos governos municipais para que possam ser feitas ações voltadas a enfrentar essa realidade da educação rural, que é muito desafiadora”, disse.
Com uma amostra de cinco municípios distintos, entre os 62 municípios do Amazonas, o “censo escolar da floresta” apresenta quase que um retrato da educação rural em todo o Estado, considerando a diversidade de realidades. Conforme o Ítalo Dutra, chefe do Programa de Educação e Parcerias do Unicef, o documento pode, principalmente, servir para a própria ONU construir estratégias de solução aos problemas do ensino rural no Estado.
“A publicação mostra um olhar mais apurado sobre os desafios, mas também (mostra) as possibilidades da educação rural, da educação no campo, de comunidades tradicionais do Amazonas, que tem a sua própria diversidade. Para nós ter essa informação qualitativa em mãos nos ajuda a pensar em estratégias que a gente possa auxiliar, com apoio técnico do Unicef, governos municipais e estaduais, à melhoria e garantia dos direitos da criança e do adolescente em relação a educação nessas comunidades”, disse.
Cenário desconhecido
No estudo, um dos primeiros resultados levantados é o próprio “desconhecimento” sobre o cenário educacional no interior do Amazonas para censos escolares do País. Conforme os pesquisadores da FAS e da Unicef, há quase que uma “inexistência” das escolas rurais ribeirinhas do Amazonas para o resto do País, o que compromete justamente a adoção de políticas públicas voltadas às realidades dessas regiões.
Ao todo, são 83 escolas analisadas em cinco municípios e, respectivamente, cinco Unidades de Conservação (UC). Essas escolas ficam situadas em diversas comunidades ribeirinhas dentro das Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Anamã, que fica no município de Maraã; na RDS do Juma, em Novo Aripuanã; RDS Mamirauá, em Uarini; RDS do Uatumã, em Itapiranga; e na Floresta Estadual de Maués, no município de Maués. Das 83 escolas, quatro já estavam extintas e três paralisadas.
A análise dos dados no estudo foi dividida em três categorias: 1) perfil da escola, com infraestrutura, equipamentos, organização do ensino e localização; 2) o perfil do docente, incluindo informações sobre professores, auxiliares, gestores, assistentes e tecnologias usadas em sala de aula; e 3) o perfil da participação comunitária, sobre a participação da família e da comunidade no cotidiano escolar e a existência de associação de pais e mestres e conselhos.
Realidade da educação rural
Conforme os pesquisadores da FAS e da Unicef, fatores específicos da Amazônia fazem da educação rural na região algo bem mais desafiador que no resto do país. Extensão territorial, transporte predominantemente fluvial, alto custo logístico de viagens, além fenômenos naturais como seca e cheia dos rios fazem do ensino rural no Amazonas algo problemático. Mesmo assim, e contraditoriamente, segundo eles, as escolas ainda são uma das poucas políticas públicas que chegam aos ribeirinhos do Amazonas – há carência de saúde, segurança, entre outros.
“As grandes distâncias e o alto custo de deslocamento dificultam a capilaridade do poder público na região, e desafiam o acompanhamento das Secretarias Municipais de Educação (Semed) sobre as escolas e professores”, consta no estudo científico. “Entre os municípios pesquisados, poucos são os que conseguem encontrar soluções para as dificuldades de logística do interior. Aqueles que conseguem, obtêm melhores índices de alfabetização”.
Das escolas visitadas em atividade e gerenciadas pelas Semeds, 95% ofereciam apenas acesso à Educação Infantil e 91,6% ao Ensino Fundamental I. Somente 21% tinham o ciclo educacional completo: Educação Infantil, Ensino Fundamental séries iniciais e finais, e Ensino Médio tecnológico. Apenas 9% das escolas ofereciam a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Espaços físicos e séries
Outro fator importante é que 94% dessas instituições de ensino possuíam prédios escolares próprios dos órgãos regionais de educação e, desse total, 10% tinham infraestruturas complementares e que também eram usadas das como salas de aula. No entanto, 6% das escolas ainda não funcionavam em prédios escolares, mas sim em igrejas/templos, centros sociais e casas de comunitários.
Do ensino nessas escolas, 74% das escolas organizavam o ensino em classes multisseriadas, 4% mesclavam as classes multisseriadas com classes seriadas e, apenas 22% executavam o ensino exclusivamente em classes seriadas. “É universal a existência de salas compartilhadas, isto é, salas que possuem diferentes usos em um mesmo espaço”, disse o estudo. Nesse contexto, 45% possuíam apenas uma sala de aula e 33% tinham mais de duas salas.
Água, esgoto, lixo e energia
Ainda sobre estrutura, 70% das escolas não tinham banheiro dentro do prédio e 99% não possuíam tratamento de esgoto adequado. 76% não disponibilizavam água tratada e somente uma escola tinha esgoto correto. As outras se dividiam em modelos que não dão conta de atender exigências sanitárias mínimas. Já a coleta seletiva foi citada em apenas 1% das escolas, localizadas próximas às sedes dos municípios. “Longas distâncias, alto custo e falta de prioridade na agenda pública são fatores que inviabilizam a chegada de equipes de coleta seletiva nas comunidades rurais”.
Sobre fornecimento de energia elétrica, só 34% das escolas tinham acesso ao serviço, e mesmo aquelas com energia apresentavam problemas com o abastecimento, já que apenas 24% relataram não ter tido complicações de energia ao longo do ano letivo.
Internet e tecnologias
Nas escolas analisadas geridas pelas Semeds internet ainda era uma realidade distante, já que 97% delas não tinham acesso à rede. Das escolas municipais que têm acesso, 3% encontram-se exclusivamente em áreas fora das UCs. “O computador é um dos principais equipamentos eletrônicos encontrados na zona rural amazonense, no entanto, é interessante constatar que muitos deles não são utilizados. Entre os 80 computadores distribuídos entre as escolas visitadas, 46% não eram utilizados”.
Merenda escolar
Em relação à alimentação dos alunos, só 15,8% das escolas receberam integralmente merenda escolas e 84,2% ficaram algum período do ano sem receber alimentos. “Surpreende que 34% das escolas ficaram entre 160 a 180 dias sem merenda. Considerando que na média, um mês letivo tem 20 dias, em 1/3 das escolas os estudantes receberam merenda apenas um ou dois meses letivos”. Sobre a agricultura familiar e regional, que deveria abastecer alimentação escolar, só 6,6% eram recebiam merenda oriunda da culinária local e 93,4% não.
Professores e comunidade
Outro dado interessante é que 65% dos docentes tinham nível superior de escolaridade. Mais da metade (58,3%) não tinham gestor e 41,7% tinham. Além disso, em 12% das escolas visitadas a equipe escolar era composta apenas por um professor. Nas escolas visitadas só 2% declararam usar materiais didáticos regionalizados específicos que atendessem à diversidade sociocultural. Da participação na vida escolar, 92,4% dos pais eram ativos e 7,6% não eram presentes.
Depoimentos
Nesse “censo escolar da floresta”, o diferencial são os depoimentos dos próprios alunos, professores, pais e presidentes de comunidades, que pela primeira vez puderam ter “lugar de fala” e serem ouvidos sobre o que pensam sobre a educação em suas localidades. Conforme o relato a seguir de um professor de Novo Aripuanã, na RDS do Juma. “Dar aula para uma sala de aula de 20 alunos não é simples, principalmente quando os 20 alunos são de idades diferentes e correspondem a diferentes momentos da alfabetização”. Em todo o estudo estão espalhados dezenas de aspas dos comunitários.
Ficha técnica
Pela FAS participaram da publicação o superintendente-geral Virgílio Viana, o superintendente técnico-científico Eduardo Taveira, a coordenadora-técnica Nathalia Flores, e os consultores técnicos Arthur Goerck, Caio Di Pietro, Jocimar Golvin Venturelli, Laura Candelaria M. Lima, Maíra Mendes dos Santos. Pela Unicef o chefe do Programa de Educação e Parcerias Ítalo Dutra, a coordenadora do Território Amazônia Anyoli Sanabria, a oficial do Programa de Educação Júlia Ribeiro, o UNV oficial de Educação Matheus Malta Rangel e a UNV oficial de Monitoramento e Avaliação Martina Bogado Duffner. A colaboração foi de equipes técnicas das secretarias Municipais de Educação.