Artigo: Orçamento ou cheque especial de carbono?
16/11/2016
Segundo o IPCC para manter o aquecimento global abaixo dos 2oC até 2100 a humanidade tinha, em 2014, 1000GtCO2 de “orçamento de carbono”. Este “orçamento” indica o montante cumulativo de gases de efeito estufa (GEE) que ainda pode ser emitido sem que se extrapole a meta de 2oC. Entretanto talvez faça mais sentido considerar este valor como um cheque especial ao invés de um orçamento.
Os orçamentos descrevem recursos disponíveis para serem aplicados com um determinado propósito. Bons níveis de execução demonstram habilidade dos gestores e não existe, a princípio, nenhum ganho em antecipar ou postergar a utilização dos recursos orçados. Os problemas relacionados aos orçamentos normalmente começam quando os recursos estão prestes a acabar. No caso do “orçamento de carbono”, esta linha de raciocínio é provavelmente inapropriada e até perigosa.
O cheque especial, por outro lado, funciona de forma diferente. Quando mais gastamos mais somos penalizados e maior fica a conta a ser paga no futuro. O impacto negativo da utilização do cheque especial é cumulativo e os prejuízos começam a ser percebidos muito antes de estourar o limite. Consequências do aquecimento global já estão sendo observadas de forma incremental, impactando ecossistemas e populações e começando pelos mais vulneráveis.
Considerando as projeções de emissão, estima-se que a humanidade deve estourar o limite deste cheque especial em algum momento entre 2060 e 2075. Neste momento, acabou a margem de manobra, ou as emissões líquidas estão zeradas ou devemos dar como certo que o aquecimento do planeta supere os 2oC.
Utilizar menos do limite em relação ao período anterior não contribui para resolver o problema, nem o torna menor, apenas aumenta a janela de oportunidade para que o problema seja resolvido. A constatação de que em 2015 as emissões globais ficaram estáveis em relação ao ano anterior não significa que estamos nos distanciando do problema, apenas que estamos caminhando na mesma direção um pouco mais devagar do que o previsto.
Antecipar medidas significa passar do discurso para a prática. Mudar hábitos e rever prioridades. Estas mudanças precisam de certo nível de inquietação, que por sua vez tem mais chance de surgir do constrangimento de se ter uma dívida do que do conforto de se ter um orçamento.
Assim como no cheque especial ao protelar ações efetivas no sentido de resolver o problema a conta a se pagar só tende a aumentar. Segundo a UNEP, antecipar a adoção de medidas de mitigação de emissões gera uma série de benefícios econômicos e tecnológicos como a possibilidade de testar, avaliar e aprimorar tecnologias de baixo carbono antes de escalar estas soluções.
Em relação aos impactos da emissão de GEE os prejuízos da inação se assemelham mais a utilização insistente do cheque especial do que de uma eventual baixa execução orçamental. O cheque especial está lá para não ser utilizado, ou melhor, para ser utilizado apenas em casos emergenciais. Seguindo esta analogia o objetivo comum deve ser sair do cheque especial, e com a maior brevidade possível.
Para tanto, é necessária a reestruturação da dívida, que no caso das emissões são chamadas de INDC (Contribuição Nacionalmente Determinada Pretendida). A boa noticia é que, até o fim de 2015, 160 INDCs, referentes a 187 países e cobrindo 95% das emissões globais haviam sido submetidos. Adicionalmente, grande parte dos países já ratificou os seus planos de redução de emissão, tornando-os NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada). E recentemente o setor de aviação internacional, representado pela ICAO, cujas emissões representam algo em torno de 1,5% das emissões globais, também aprovou um plano de mitigação de emissões. Conjuntamente, estes planos representam o mais ambicioso e sem precedente conjunto de boas intenções no sentido de limitar o aquecimento global.
A má noticia é que não é suficiente. Mesmo se todos os INDCs forem plenamente implementados é consenso na literatura especializada que a temperatura em 2100 superará os 3,5oC com probabilidade acima de 66%, podendo chegar até a 4oC, considerando os limites da incerteza dos modelos utilizados3. Ã? preciso muito mais ou a dívida vai continuar aumentando até a situação de calote.
Dentre os fatores do endividamento climático global existem dois vilões óbvios e que atuam como parceiros: a geração (primária) de energia e o crescimento econômico não sustentável. Estudos indicam que ambos estão mostrando sinais de redenção. Nos Ultimos anos o incremento no uso de fontes renováveis de energia duplicou em 44 dos 58 principais países emissores e o consumo mundial de carvão parece estar em uma firme trajetória de declínio. Na mesma linha, estudos recentes indicam que nos Ultimos dois anos as emissões globais se dissociaram do crescimento econômico.
Boas notícias sem dUvida, mas talvez seja melhor esperar um pouco para estourar aquele champagne que trouxe da COP21. Embora ambas pareçam bastante promissoras, cabem aqui análises distintas. Enquanto no caso da geração de energia estamos nos perguntando se estamos fazendo as coisas do jeito certo â?? estamos gerando energia da melhor forma possível? – em relação ao crescimento econômico precisamos de uma reflexão mais profunda a partir do questionamento do que é a coisa certa a se fazer â?? quais as referências de crescimento que devemos adotar?
Ã? neste processo de reflexão mais profunda que está a oportunidade para fechar a conta e convergir para a mudança na tendência de aumento de emissões. Ã? um exercício de internalizar o desenvolvimento sustentável em todos os aspectos da sociedade. Inserir esse conceito em questões como transportes e mobilidade urbana, gestão de resíduos e uso do solo são apenas alguns exemplos de elementos que precisarão ser considerados para sairmos do cheque especial.