A redução da poluição do ar deveria ser uma aspiração de todos, acima das diferenças ideológicas e político-partidárias
É chocante ver a fumaça que cobre as cidades da Amazônia nesse verão de 2023. É uma paisagem distópica! Cidades no meio da maior floresta tropical do mundo têm amanhecido envoltas numa densa névoa de fumaça. Nos primeiros dias de setembro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou mais de 1.400 focos de incêndios no Sul do estado Amazonas, atingindo cidades como Humaitá, Lábrea e Manicoré. Frequentemente os níveis de poluição do ar na região amazônica têm alcançado níveis que variam de “ruim” a “péssimo” na escala que mede os riscos para a vida humana.
As implicações disso sobre a saúde dos amazônidas e as atividades econômicas da região ainda são pouco conhecidas pela população e precisam ser melhor analisadas e debatidas. A quem interessam o desmatamento e as queimadas? De que forma as sociedades amazônicas podem responder diante da gravidade da situação atual? Quais são as perspectivas para o futuro? O que pode ser feito?
Vamos por partes. Primeiro, é importante entender que a poluição do ar na região está diretamente ligada ao desmatamento. Depois de cortadas as árvores, o fogo é usado para preparar a terra para a atividade agropecuária. É importante registrar que o desmatamento beneficia uma pequena parcela da população amazônica ao mesmo tempo em que prejudica sua imensa maioria, em especial idosos e crianças, mas também pessoas adultas.
Mais de 90% do desmatamento ocorre de forma ilegal, dentro de terras públicas que foram alvo de grilagem. Depois de desmatadas, essas áreas são transformadas em pastagens, que geram empregos escassos, temporários e com baixa remuneração. Como mais de 80% da população da região é urbana, a maior parte dela sofre as consequências da poluição do ar sem ter nenhum benefício econômico.
A poluição do ar é um dos maiores problemas de saúde pública na Amazônia no período das queimadas. Respirar um ar poluído chega ser tão nocivo quanto fumar dezenas de cigarros por dia. Doenças ligadas ao sistema respiratório, como asma, são agravadas pela poluição do ar. O mesmo ocorre com o aumento da incidência de problemas cardiovasculares, entre muitos outros. Além disso, existem as consequências no aumento dos gastos públicos. Um estudo feito no estado de São Paulo mostra um aumento do gasto em saúde pública decorrente da poluição do ar superior a 5 bilhões de reais por ano. A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta a poluição do ar como um dos principais problemas de saúde pública do mundo. A poluição do ar também afeta negativamente a economia da Amazônia. O turismo, que tem um grande potencial na região, é seriamente afetado pela poluição do ar. Turistas não querem estar em locais insalubres. Por outro lado, florestas incendiadas diminuem sua capacidade de produção de frutas como açaí, além de madeira e outros insumos que são essenciais para as indústrias da bioeconomia amazônica. As queimadas também diminuem a produção de peixe e a caça, que são negativamente impactadas pela degradação ambiental. Isso afeta diretamente a economia das comunidades ribeirinhas e dos povos indígenas, que tem sua segurança alimentar ameaçada. Exemplo notório dessa situação pode ser visto no município de Barcelos, lar para povos indígenas cujas roças estão sendo afetadas por queimadas recorrentes, com perdas na diversidade biológica e alimentar de centenas de famílias.
A atração de talentos para trabalhar nas empresas, universidades, governo e organizações da sociedade civil também é prejudicada pela poluição do ar, que afeta a qualidade de vida de quem mora na Amazônia. Todas aquelas pessoas que gostam de caminhar, correr, andar de bicicleta ou nadar ao ar livre sofrem com os efeitos da poluição do ar. Pesquisa recém-publicada do Estudo feita pela CarbonPlan e o The Washington Postcoloca cidades amazônicas, com destaque para Manaus e Belém, como aquelas que devem se tornar as mais quentes e insalubres do mundo nas próximas décadas caso continuemos na trajetória atual.
A atitude das sociedades amazônicas diante dessa tragédia ainda é pautada pela desinformação sobre as causas da poluição do ar. Muitos ainda imaginam que são as queimadas de lixo ou de áreas verdes urbanas que causam a poluição do ar nas cidades. É necessário ampliar o entendimento sobre as reais causas do problema.
Uma ferramenta extremamente eficaz foi desenvolvida pela Universidade Estadual do Amazonas (UEA). Trata-se do aplicativo “Selva”, que é de acesso livre e gratuito na internet. Por meio desse aplicativo, é possível visualizar os focos de incêndios das últimas 24 horas em toda a Amazônia. Além disso, é possível visualizar a qualidade do ar, medida por meio de uma rede de sensores de materiais particulados que indicam os níveis de poluição do ar. Manaus, por exemplo, tem diversos sensores que permitem visualizar os níveis de poluição em tempo real. Esses dados deveriam ser mais divulgados pelas mídias convencionais e mídias sociais para aumentar o nível de conhecimento da população sobre o tema. Seria importante ampliar a rede de sensores para que cada município da Amazônia tenha pelo menos um medidor de poluição do ar ligado à rede da UEA.
As perspectivas para o futuro são preocupantes. A Amazônia já sofre as consequências das mudanças climáticas globais. O regime de chuvas já está alterado, com o aumento da duração da estação seca. Isso aumenta a flamabilidade das florestas e as queimadas facilmente se transformam em incêndios de proporções gigantescas. As projeções cientificas apontam para um aquecimento global mais acelerado do que anteriormente previsto. Quanto mais longa e intensa é a estação seca, mais frequentes e grandes ficam as queimadas. Isso contribui para o aquecimento global e regional, criando um efeito dominó que tende a tornar esse problema cada vez mais grave. Para piorar, algumas lideranças políticas da região ainda alimentam teorias sem base cientifica que negam as mudanças climáticas globais. Isso é um desserviço para a saúde e o bem- estar de quem mora na Amazônia.
Em que pese um cenário preocupante para o futuro, ainda existem razões para manter acesa a chama da esperança. Como resultado da mudança na política do Governo Federal para a Amazônia, houve uma redução de 48% no desmatamento nos oito primeiros meses de 2023 em comparação com o mesmo período de 2022. Alguns governos estaduais estão também contribuindo para essa mudança positiva, enquanto outros ainda não se engajaram suficientemente no desafio de reduzir o desmatamento, as queimadas e a poluição do ar.
A redução da poluição do ar deveria ser uma aspiração de todos, acima das diferenças ideológicas e político-partidárias. Com o aumento do acesso à informação as sociedades amazônicas vão cada vez mais votar em políticos que representem a bandeira da despoluição do ar e do combate ao desmatamento. Isso pode gerar um efeito dominó positivo. Necessitamos de uma grande aliança de governos municipais, estaduais e federal no Brasil e, ainda, o engajamento dos governos dos países vizinhos que representam cerca de 40% da região amazônica. Todos devem se unir em uma grande frente contra a poluição do ar. A Cúpula da Amazônia realizada em Belém foi um passo importante nessa direção. Agora é hora de transformar o discurso em prática.
Precisamos de um Plano de Ação para a Despoluição do Ar na Amazônia. Esse plano deve ser elaborado pelos diferentes segmentos da sociedade: universidades e institutos de pesquisa, organizações da sociedade civil, produtores rurais, povos da floresta, empresas e governos. Precisamos unir a ciência com a prática; transformar a preocupação em ação. Ainda há tempo para mudar o rumo da trajetória que estamos trilhando, mas a emergência requer que sejamos rápidos, eficientes e eficazes. Devemos combinar financiamento nacional e internacional, público e privado, para implementar um plano de ação ambicioso. A poluição do ar é contra o interesse nacional e faz mal para a saúde e a economia de todas pessoas que vivem na Amazônia.
Publicado originalmente no site A Crítica, em 23/09/2023