A pandemia do Covid tem sido um enorme desafio para a Aliança Covid Amazônia. Conseguimos articular uma parceria que envolve 97 instituições dos mais diversos segmentos: associações de moradores, prefeituras, órgãos do governo estadual e federal, ministério público, organizações da sociedade civil, universidades e instituições de pesquisa, empresas, doadores individuais e a cooperação internacional. Chegamos a mais de 4 mil comunidades e aldeias, com uma estratégia de ação desenhada para as particularidades da Amazônia profunda.
A implementação da estratégia da Aliança tem nos permitido uma série de aprendizados. Talvez o mais significativo tenha sido a constatação de que precisamos repensar o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS tem muitos pontos positivos, foi um importante esteio no enfrentamento do Covid em todo o Brasil e, na média, funciona razoavelmente bem para a realidade urbana. Entretanto, o SUS não funciona bem para a realidade da Amazônia profunda, onde vivem as populações tradicionais e os povos indígenas. Essa realidade é totalmente diferente do restante do Brasil. Diante disso, estamos propondo a construção de propostas para a adaptação do SUS à realidade das milhares de comunidades e aldeias da Amazônia profunda. Denominamos isso de “SUS na Floresta”.
A ideia de um “SUS na Floresta” me ocorreu numa manhã de junho, quando preparava o material para uma reunião do Comitê Científico da Aliança. O conceito pode ser descrito de forma simples: o “SUS na Floresta” é uma iniciativa para analisar, debater e propor ajustes no SUS para melhor adequá-lo à realidade da Amazônia profunda. Não se trata de questionar ou substituir o SUS. Pelo contrário: esta é uma iniciativa para fortalecer e aprimorar o SUS, com um olhar especial para o contexto específico das comunidades e aldeias da Amazônia profunda.
A principal característica da Amazônia profunda é o isolamento e disso decorrem as dificuldades de transporte, logística e comunicação. A título ilustrativo, as comunidades mais distantes com as quais a FAS trabalha ficam a mais de 15 dias de viagem de Manaus. Existem mais de seis mil comunidades e aldeias apenas no estado do Amazonas.
Além do isolamento, temos que considerar também as diferenças sociais, culturais, ambientais, econômicas e institucionais. Do ponto de vista social, a população é dispersa, com uma média de 16 famílias e 68 pessoas por comunidade. Culturalmente, na Amazônia continental, que envolve mais oito países, são mais de 180 povos indígenas, que falam mais de 120 línguas. Apenas no estado do Amazonas são 66 povos indígenas, que falam 29 línguas. Por outro lado, as populações tradicionais são também muito diversas e incluem ribeirinhos, extrativistas de terra firme, quilombolas e outros. Do ponto de vista ambiental, existe uma enorme heterogeneidade que inclui os ecossistemas de rios de águas brancas, claras ou negras; florestas de várzea e terra firme; regiões com estações secas mais ou menos pronunciadas – entre outros eixos de diversidade do espaço físico e biológico. Institucionalmente, o SUS indígena é fortemente ancorado no Governo Federal, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde. A saúde das populações tradicionais, por outro lado, é principalmente vinculada às secretarias municipais de saúde, com algumas ações complementares dos governos estaduais e Governo Federal, como no caso de barcos de unidades móveis de saúde (incluindo a Marinha).
Repensar o SUS na Amazônia profunda é uma tarefa complexa, desafiadora e urgente. A calamidade do COVID expôs de forma claríssima o quanto a situação atual é injusta com os guardiões da floresta amazônica, que recebem uma atenção básica de saúde de qualidade de pior qualidade do que as populações urbanas da própria Amazônia.
Nossa estratégia é fomentar um processo de discussão do SUS na Floresta com seis eixos estratégicos. Primeiro, fortalecendo e ampliando o ecossistema de parcerias da Aliança COVID Amazonas. Segundo, fortalecendo e ampliando o Comitê Técnico e Científico da Aliança, que está sendo reformulado para atender os novos desafios do SUS na Floresta. Terceiro, realizar estudos e análises técnicas profundas sobre os principais problemas e soluções, trazendo o estado da arte da ciência e as lições aprendidas das iniciativas mais exitosas em toda a Amazônia. Quarto, desenhar propostas de políticas públicas a partir de processos participativos abertos e plurais, tendo como referência as lições aprendidas pelas ações práticas realizadas pela FAS e pelos parceiros da Aliança. Quinto, valorizar os saberes etnobotânicos e etnofarmacológicos dos povos indígenas e populações tradicionais. Sexto, explorar caminhos de pesquisa e desenvolvimento para a incorporação mais ampla dos fitoterápicos derivados da biodiversidade amazônica no SUS.
Contamos com o apoio e colaboração de todos, especialmente os parlamentares. A iniciativa da Câmara Federal de criar uma Comissão Especial para tratar do SUS é uma oportunidade singular e esperamos contribuir tecnicamente com propostas e sugestões. Por outro lado, é importante seguir implementando ações práticas de saúde na floresta, com ênfase especial na telessaúde e na formação de agentes de saúde. O SUS na Floresta é parte essencial de um projeto nacional para a Amazônia. O desafio é complexo e a urgência é grande.
Artigo publicado originalmente em 15 de agosto de 2020, no Estado de Minas