As sociedades se dão conta de que a agenda climática é importante demais para ficar nas mãos de governos frágeis e capturados por grupos de interesse
Os resultados da Conferência das Partes (COP) de Glasgow são multifacetados e complexos. Ofereço aqui uma análise de quem acompanha todas as COPs, desde 2005 até hoje. Como saldo desta edição, vejo um copo mais cheio do que vazio.
Do ponto de vista das negociações diplomáticas, os resultados estão distribuídos em um grande número de documentos oficiais, fruto de negociações difíceis e complexas. Considerando as desigualdades entre os quase 200 países presentes e a necessidade de convergência de todos, a linguagem final é repleta de detalhes e sutilezas. Cada palavra foi negociada letra a letra. Houve progressos, mas também existem muitas lacunas e ambiguidades. Isso é o padrão das negociações diplomáticas, infelizmente.
Do lado positivo, ocorreram muitos avanços importantes, como a finalização do livro de regras do Acordo de Paris, depois de ano de trabalho e negociações. Isso, somado aos avanços relacionados ao artigo 6, permitirá o progresso no mercado de carbono, que pode destravar recursos financeiros relevantes, especialmente para as soluções baseadas na natureza. Do ponto de vista negativo, os compromissos assumidos pelos países nos colocam ainda distantes da meta de limitar o aumento da temperatura dentro de níveis seguros para a humanidade, conforme recomendações do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Paralelamente às negociações diplomáticas, ocorreram centenas de eventos e reuniões informais, que eu apelido de “Congresso Internacional de Mudanças Climáticas”. Nesses espaços, dentro e fora da COP, tivemos enormes progressos, puxados por lideranças empresariais, da sociedade civil e de governos subnacionais. É como se o mundo real tivesse dado a partida para uma revolução ecológica, com metas ambiciosas e soluções criativas. Como destaque, podemos mencionar o compromisso de cerca de 450 organizações financeiras, que controlam 130 trilhões de dólares, para apoiar tecnologias limpas, com baixa emissão de carbono. A elite do mundo empresarial está numa corrida para estabelecer metas de emissão zero cada vez mais ambiciosas. A sensação é de uma corrida de Fórmula 1 em que foi dada a largada.
Por outro lado, houve também um enorme fortalecimento da posição dos jovens e dos povos indígenas, cobrando mais urgência nas ações e menos injustiça climática. A manifestação da sociedade civil reuniu mais de 100.000 pessoas em Glasgow, cuja população é de apenas 600.000 habitantes. Esse movimento repercutiu nas negociações formais, que criaram novos espaços de participação desses segmentos nas futuras negociações climáticas globais.
Além disso, foram celebrados acordos entre países, empresas e fundações privadas, que resultaram em avanços relevantes. Uma parceria de fundos públicos e privados, por exemplo, criou uma meta de destinar 19 bilhões de dólares para a proteção de florestas. O Acordo de Florestas, assinado pelo Brasil e outros 27 países, prevê o fim do desmatamento em 2030. O Acordo do Metano, também assinado pelo Brasil, estipula o corte de emissões globais de metano de 30% em 2030, em relação aos níveis de 2020. Foi assinado também o Acordo de Carvão, envolvendo mais de 40 países, que concordaram em abandonar o uso desse combustível. Já o Manifesto da Soja do Reino Unido reuniu 27 grandes empresas, que se comprometeram a garantir que a soja não seja proveniente de áreas desmatadas após janeiro de 2020.
Muitos outros compromissos foram formalizados publicamente pelas lideranças empresariais e da sociedade civil. Alguns deles foram firmados também por governos estaduais e municipais de todo o mundo que, pelas regras das COPs, não participam das negociações diplomáticas, mas podem ter papéis relevantes na agenda climática.
Minha avaliação da COP de Glasgow é de que o saldo é um copo mais cheio do que vazio. O mundo real, guiado por lideranças empresariais, movimentos sociais e sociedade civil, vai puxar as mudanças e os governos serão caudatários desse processo. Cada vez mais as sociedades se dão conta de que essa é uma agenda importante demais para deixar nas mãos de governos frágeis e capturados por grupos de interesse. O financiamento vai vir mais do setor privado do que dos governos. As soluções vão ser lideradas pela sociedade civil e centros de pesquisa e inovação. Os acordos diplomáticos, por sua vez, vão seguir avançando, ainda que a passos lentos. Os progressos de Glasgow já asseguram mais transparência e consistência metodológica para monitorar os avanços dos países rumo às metas do Acordo de Paris.
O lado vazio do copo é extremamente preocupante. Ainda estamos longe da meta de evitar catástrofes climáticas de consequências devastadoras. As metas dos países nos colocam numa trajetória de mais de 50% aquém do que é necessário. Se seguirmos nesse caminho, as consequências serão catastróficas. Basta imaginar as cidades costeiras com um aumento do nível do mar de 6 metros… Os países como um todo precisam aumentar suas metas em pelo menos 50%. As nações desenvolvidas necessitam assumir suas responsabilidades por perdas e danos causados pelas emissões históricas e compensar os países em desenvolvimento, especialmente os mais pobres. O investimento deve ser ampliado e priorizar os mais vulneráveis, principalmente os povos indígenas e os jovens.
O posicionamento do Brasil em Glasgow foi melhor do que na última COP, em 2019, em Madri. O país trouxe uma nova atitude, com vários compromissos mais ambiciosos, e ainda contribuiu para avanços nas negociações diplomáticas sobre o artigo 6 e o mercado de carbono. A pergunta que se faz agora é: quais serão as mudanças nas políticas públicas que o Governo federal vai implementar a partir de agora para assegurar a consistência das ações de curto prazo com as metas e compromissos apresentados na COP? Há muita descrença, mas a pressão sobre o Governo é grande. O setor exportador sabe da grave ameaça da perda de acesso aos mercados, e o setor financeiro conhece bem o risco do desinvestimento internacional no Brasil. A sociedade civil respeita a ciência e sabe que não pode ficar esperando pelo Governo para agir. Por sua vez, os governos estaduais e municipais não querem perder as oportunidades de financiamento internacional e a geração de empregos verdes.
Por fim, uma reflexão sobre a Amazônia. Essa é a principal agenda internacional brasileira. Cabe ao Brasil observar o verdadeiro interesse nacional, que é buscar o desmatamento zero o mais rápido possível. Disso dependem as chuvas, essenciais para a geração de energia elétrica, produção agropecuária e abastecimento urbano. Disso depende também a imagem e a credibilidade internacional do Brasil. A COP acendeu muitas luzes de esperança para a Amazônia, com promessas de financiamento internacional. O problema é que a região, assim como o planeta, tem uma urgência que é maior do que a velocidade de implementação das mudanças necessárias.
Essa é a equação final: estamos no rumo certo, mas a velocidade ainda está abaixo do necessário. É possível e urgente acelerar: existem recursos financeiros e soluções tecnológicas para isso. A missão da COP de Glasgow não acabou. Cabe à sociedade cobrar dos governos e empresas que pisem fundo no acelerador para a transição rumo a uma economia sustentável em termos climáticos, sociais e ambientais. Isso é essencial para manter acesa a chama da esperança.
Artigo publicado originalmente no El País, em 17 de novembro de 2021