A história da organização social na Amazônia profunda é permeada de processos de mobilização e desmobilização de comunidades. Momentos de forte mobilização ocorreram ao redor de conflitos de pesca, em lagos desde a década de 1970. Comunidades ribeirinhas se revoltaram contra pescadores comerciais que praticavam pesca predatória e pouco, ou quase nada, deixavam de benefícios para as comunidades locais. Muitas conquistas foram alcançadas, com acordos de pesca e planos de manejo de lagos, com especial destaque para o pirarucu. Comunidades ribeirinhas também se organizaram para reivindicar direitos sobre o uso de recursos florestais extrativistas como borracha, castanha, andiroba e outros. Muitas conquistas foram alcançadas, especialmente no Amazonas, após 2003, quando houve uma forte expansão das Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e reservas extrativistas.
Após a conquista de direitos sobre os recursos pesqueiros e extrativistas, emergiu uma nova agenda: a melhoria da qualidade de vida das comunidades ribeirinhas em Unidades de Conservação (UCs). Essa nova agenda, ao contrário da primeira, não tem um “inimigo” claro. Antes, a mobilização era contra os peixeiros comerciais ou os proprietários de castanhais e seringais. Agora, o desafio é outro e mais difuso. Trata-se de superar a deficiência de políticas públicas de educação e saúde e, ao mesmo tempo, aumentar a renda. É um desafio mais complexo e de difícil visualização. Por isso, mobiliza menos as comunidades.
A realidade predominante hoje é de fragilidade do associativismo na maior parte das comunidades ribeirinhas. Poucas associações são formalizadas, pouquíssimas estão em dia com os requisitos legais e a participação é muito pequena. Esse fato não decorre da menor politização ou consciência social das comunidades ribeirinhas. É necessário entender a realidade ribeirinha para explicar essa realidade. Primeiro essas comunidades estão distantes dos centros urbanos e dispersas na imensidão da Amazônia profunda. Isso significa elevados custos de logística para a organização e mobilização social. Segundo, trata-se de comunidades com alguns dos mais elevados níveis de pobreza do Brasil, marcados por baixos índices de desenvolvimento humano. Investir tempo e dinheiro em associações comunitárias tem um peso econômico muito forte para as comunidades ribeirinhas. Terceiro, existe um contexto sociocultural, herdado do ciclo da borracha, onde a desunião era a regra imposta pelos seringalistas.
É nesse contexto que foi concebido o Bolsa Floresta Associação – um dos quatro componentes do Programa Bolsa Floresta. O seu objetivo estratégico é estimular o associativismo como um ingrediente essencial para o processo de promoção da melhoria da qualidade de vida das comunidades ribeirinhas e de conservação ambiental.
O Programa Bolsa Floresta foi instituído por lei e regulamentado por um decreto que prevê a obrigatoriedade do associativismo para os beneficiários do Programa – cuja participação é voluntária. A ideia era que pequena parcela (média de R$ 5 por mês) do pagamento do Bolsa Floresta Familiar (R$ 600 por ano) fosse usada para pagar as taxas das associações. Adicionalmente, as “associações-mãe” (federações de associações comunitárias de cada UC) recebem apoio do Bolsa Floresta Associação. Estas associações recebem um conjunto de investimentos estruturais (lancha voadeira, computador, máquina fotográfica, conexão internet, apoio para construção ou reforma da sede, etc.) e apoio para o custeio (combustível para transporte, alimentação e logística para reuniões de diretoria e assembleias). São investimentos destinados a enfrentar a realidade histórica de fragilidade do associativismo na Amazônia profunda.
Apesar das muitas dificuldades e do curto espaço de tempo, já se pode observar avanços expressivos. Das 15 unidades de conservação onde o Programa está sendo implementado, 12 possuem associações (todas em conformidade com todos os requisitos legais) e as outras três estão em fase adiantada de constituição formal de suas associações, com a coordenação do Centro Estadual de Unidades de Conservação – CEUC. Em 2007, antes do início do Programa, havia apenas oito associações formalmente constituídas nessas 15 unidades de conservação – a maioria delas em desconformidade com algum requisito legal. Nas 12 unidades que já possuem associações, a taxa de adesão é de 79% das famílias – um nível que pode ser considerado elevadíssimo, não apenas para a Amazônia. Em 2011, apenas 12% das unidades de conservação onde ainda não está sendo implementado o Programa Bolsa Floresta possuem associações formalizadas. Por outro lado, 79% das unidades que têm o Bolsa Floresta possuem hoje associações formalizadas e legalizadas. Todos os dados mostram um avanço expressivo no associativismo nas comunidades beneficiadas pelo Programa Bolsa Floresta.
Existem ainda outros indicadores expressivos. Tomemos o caso das eleições de presidentes e diretoria, que passaram a ter mais interesse, disputa, transparência, e legitimidade. Em outras palavras, mais democracia. Ilustro com o caso da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro, onde recente eleição teve a participação de 351 famílias, representando 74% dos moradores. Depois de um debate tranquilo e organizado, foi eleito um novo presidente, com 68% dos votos. O presidente à época, candidato à reeleição, teve apenas 4% dos votos. Havia uma indignação contra ele, motivada por uma percepção de inoperância e desvios de conduta. Uma verdadeira lição de democracia.
Ainda existem muitos desafios para o associativismo ribeirinho na Amazônia profunda. A logística permanece uma questão – e continuará a ser por razões físicas e geográficas. O legado sociocultural dos seringais, de mais de um século, permanece vivo no imaginário e valores locais. Felizmente a pobreza está sendo enfrentada por uma prosperidade crescente. Por exemplo, pesquisa realizada pelo Instituto Action, com 5% de margem de erro, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Uatumã revelou que 70% das famílias tiveram aumento de renda, com um acréscimo de 36% sobre a renda anual. Boa parte disso se deve aos investimentos do Bolsa Floresta Renda (média de R$ 190 mil por UC por ano) e pelo Bolsa Floresta Familiar (R$ 600 por família por ano). Somam-se a isso os ganhos de desenvolvimento humano decorrentes dos investimentos (média de R$ 175 mil por unidade de conservação por ano) em educação, saúde, saneamento, comunicação e transporte, derivados do Bolsa Floresta Social.
O associativismo é um componente essencial do processo de desenvolvimento humano das comunidades ribeirinhas. Não se trata de desafio fácil de ser superado a curto prazo. Mas, sim de um desafio urgente, dados os inaceitáveis níveis de pobreza extrema da Amazônia profunda. E, como disse Nelson Mandela, “pobreza e miséria não combinam com conservação ambiental”.
Publicado originalmente no site da FAS, em 22/11/2011